Transgeneridade e Direito
Transgeneridade e Direito

Transgeneridade e Direito

30/06/21

Pode ser conceituado como transgênero a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi imposto ao nascimento, podendo também incluir pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros masculino e feminino ou com mais de um deles.

 

Dentro da categoria de transgênero, enquadram-se travestis, transexuais, não-binários, crossdressers, drag queens.

 

Basicamente, transexual é a pessoa cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico. Logo, trata-se de uma mulher, assim biologicamente considerada, que se entende do gênero masculino ou um homem, assim biologicamente considerado, que se entende do gênero feminino.

 

E, embora a transexualidade não seja mais considerada uma doença mental desde junho de 2019, sendo caracterizada, a partir de então como “disforia” ou “incongruência” de gênero, ou seja, como uma condição ligada à saúde sexual, é fato que a mera reclassificação do termo não foi suficiente para reduzir o preconceito e a violência que insistem em rondar as pessoas transexuais.

 

Não é à toa que o Brasil é considerado um dos países que mais discrimina e mata pessoas LGBT’s no mundo, ocupando o primeiro lugar, entre as Américas, em quantidade de homicídios de pessoas LGBT’s, sendo também líder em assassinatos de pessoas trans, de acordo com estudos realizados em 2019 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

 

Na contramão de toda esta horda de preconceito e violência, infelizmente, aliada à onda conservadorista pela qual passa o Brasil, resiste um movimento político e cultural voltado para a defesa dos direitos das pessoas LGBT’s, movimento este que, juntamente com a sociedade vanguardista, recebeu com grande alegria o Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça.

 

É imperioso ressaltar que, embora a Constituição Federal de 1988 tenha consagrado a igualdade e a dignidade como direitos fundamentais, antes do referido provimento, era comum a necessidade de ações judiciais para o exercício de tais direitos, ações estas que, não raras vezes, chegavam às Cortes Superiores após longos, dolorosos e angustiantes anos de tramitação.

 

O fato é que, assim como ocorreu em relação ao casamento homoafetivo, novamente foi necessária a intervenção do Poder Judiciário para, através do Provimento 73/2018, ditar as diretrizes para facilitar, basicamente, o acesso do transgênero à alteração do prenome e do gênero via processo extrajudicial.

 

Basicamente, “após muitas decisões jurisprudências a favor do tema, foi possível de acordo com a ADI nº 4275-DF, proferida pelo STF, a averbação da alteração do prenome e gênero no registro de nascimento e casamento de pessoas transgêneros por meio do provimento nº 73 de 28 de junho de 2018, utilizando como base a interpretação a Constituição Federal, bem como a opinião Consultiva nº 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a legislação internacional de direitos humanos, em especial o Pacto de San José da Costa Rica.”[1]

 

Neste diapasão, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o artigo 58 da Lei 6.015/73 conforme a Constituição Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade supracitada, entendeu por bem, em síntese, conceder ao transgênero o direito de alterar, extrajudicialmente, o prenome e o gênero diretamente no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, independentemente, importante frisar, deste ter realizado a cirurgia de readequação sexual ou de realizar tratamento hormonal.

 

A partir de então, qualquer pessoa que se identifique como transgênera com mais de 18 anos e capaz pode, administrativamente e, portanto, sem a necessidade de advogado, intentar, junto aos Cartórios de Registros de Pessoas Naturais, pleito objetivando a alteração de seu prenome e gênero, bastando, para tanto, que apresente, obrigatoriamente, documentos pessoais, comprovante de endereço, certidões negativas estaduais e federais de âmbito cíveis e criminais, protestos, eleitoral e do trabalho dos últimos cinco anos, também justiça militar, se for o caso, sendo facultado ao requerente juntar laudo médico e parecer psicológico.

 

Apresentados os documentos obrigatórios supracitados e previstos no artigo 4º, § 6º do Provimento 73/2018, é instaurado o processo administrativo de natureza sigilosa que culminará, invariavelmente, na alteração do prenome e do gênero do requerente.

 

É fundamental aclarar, contudo, que, caso o requerente possua descendentes, estes precisarão anuir para que seus respectivos registros sejam alterados, o mesmo ocorrendo caso referido requerente tenha sido casado no passado, sendo certo que, havendo discordância, o consentimento, obrigatoriamente, deverá ser perseguido pela via judicial.

 

Apesar de conceder aos transgêneros tal direito, infelizmente, o Provimento em comento restringe o acesso a tal direito apenas aos maiores e capazes, deixando de fora, por exemplo, os deficientes, na contramão do movimento inclusivo e igualitário sedimentado através da Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015.

 

Da mesma forma, a maioridade também é vista como um obstáculo controverso, notadamente porque, embora, num primeiro momento, se entenda por natural tal requisito, é fundamental se ter em mente que a transgeneridade costuma se manifestar precocemente e, evidentemente, a vedação ao exercício da identidade de gênero traz máculas e traumas que, certamente, tornarão muito mais difícil a vida daquela criança/adolescente. Neste sentido:

 

“DIREITO CONSTITUCIONAL. TRANSEXUALIDADE. CRIANÇAS E ADOLESCENTES. USO DE NOME SOCIAL DO ALUNO EM ESCOLAS. PRINCÍPIO DA IGUALDADE E PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO POR MOTIVO DE GÊNERO. DIREITOS FUNDAMENTAIS DE LIBERDADE, LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE, PRIVACIDADE E RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. TRATADOS INTERNACIONAIS. INTERPRETAÇÃO. DEVER DE CUMPRIMENTO DA RESOLUÇÃO Nº. 12/2015/CNCD. 1. […]. 7. Há que se atentar ao dever de proteção integral às crianças e adolescentes, à sua integridade física, psíquica e moral, com a preservação da sua identidade e personalidade, autonomia, e valores – a qual abrange o respeito ao nome com o qual o menor de fato se identifica, sem ser forçado a utilizar, no âmbito escolar, nome que fere sua identidade. 8. Impõe-se a proteção do menor contra violência psicológica ou física advinda do medo e da intimidação, para o fim de forçá-lo a aceitar a intolerância e a discriminação do ambiente escolar. 9. É inadmissível a violação ao direito fundamental à igualdade, uma vez que a resistência enfrentada pelo aluno transgênero deve, nos termos de todos os dispositivos normativos acima mencionados, ser mitigada através de ações assertivas, de responsabilidade da família, da escola e da sociedade, para que a discriminação não mais leve essas pessoas a terem seu futuro ceifado em razão do preconceito de quem deveria zelar pelo seu bom desenvolvimento. 10. Acaso se reputasse aceitável a perpetuação da discriminação sistemática no âmbito escolar de estudantes transgênero, ignorar-se-ia o conjunto do ordenamento jurídico pátrio, que, através de todos os seus níveis normativos, desde a Constituição Federal, tratados internacionais ratificados pelo Brasil, leis e atos normativos reconhecem a relevância do tema da discriminação, inclusive a de gênero, e combate os atos atentatórios aos direitos fundamentais de dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade e busca da felicidade. 11. […]. (TRF-4 – APL: 50104928620164047200 SC 5010492-86.2016.4.04.7200, Relator: ROGERIO FAVRETO, Data de Julgamento: 31/07/2018, TERCEIRA TURMA).”

 

De outro lado, contudo, e mormente no que diz respeito às relações de trabalho, os nossos Tribunais Trabalhistas, já mais acostumados às defesas individuais dos trabalhadores, e sempre mais sensíveis às causas humanas, mostram-se mais flexíveis no que diz respeito à proteção da identidade individual.

 

É cediço que passamos a maior grande parte de nosso tempo voltados às relações profissionais, sendo igualmente certo que aquilo que se realizamos profissionalmente se insere sensivelmente na nossa identidade.

 

Se o provérbio costuma dizer que “o trabalho dignifica”, talvez seja mais assertivo dizer que “o trabalho identifica”, e não seria minimamente plausível negar que a identidade de qualquer pessoa tivesse que ser suprimida quando do exercício de suas relações de trabalho.

 

Comumente agregamos à identidade das pessoas as suas profissões: Fulano de Tal, engenheiro; Beltrano, designer; Ciclano, terapeuta… E da mesma forma que não se pode segregar o indivíduo de seu ofício, não é aceitável que se faça distinção entre o profissional e a pessoa que realmente é.

 

Assim, enquanto as formalidades da vida civil exigem o cumprimento dos regramentos necessários às garantias das relações civis, há um princípio maior no Direito do Trabalho que garante que os fatos como eles são importam mais do que a forma que se tente dar a eles.

 

Em razão disso, de forma pacífica, os Tribunais Trabalhistas reconhecem o direito ao uso do nome social (que é a “designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida”, conforme artigo 1º do Decreto 8.727/2016, e que dispõe sobre o uso do nome social no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional), ainda que a pessoa esteja em início de sua transição, e a despeito de qualquer formalismo desnecessário.

 

Cite-se, a exemplo:

 

RECURSO ORDINARIO. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA EM RAZÃO DE SUA IDENTIDADE DE GÊNERO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. MAJORAÇÃO. A discriminação por identidade de gênero é nefasta, porque retira das pessoas a legitima expectativa de incluso social em condições iguais aos que compõem o tecido social. Dói. Mas dói na alma, no desejo e no sentido de contribuir para construir uma sociedade vocacionada à promoção do bem de todos e sem preconceitos de qualquer ordem, que assegure o bem estar, a igualdade e a justiça como valores supremos e a resguardar os princípios da igualdade e da privacidade, como quer a Constituição que organiza esse tecido social. A dispensa discriminatória, na contramão do caminhar da sociedade no sentido de avançar para além da tradicional identificação de sexos e reconhecer, como essência da dignidade da pessoa humana e do direito à felicidade, a transição e o reconhecimento daqueles cuja autopercepção difere do que se registrou no momento de seu nascimento, é medida que merece ser censurada. A empresa, como agente de transformação social que é e pela importância que ocupa no cenário econômico nacional e internacional, deveria contribuir para a construção dessa sociedade inclusiva, mais justa, mais igualitária, mais feliz a partir da felicidade de cada um. Ao contrário, fez doer a alma do trabalhador e seu sentimento de pertencer. Indenização por dano moral majorada para R$ 30.000,00.”

(TRT 1ª Região; RO 0100846-58.2019.5.01.0017; Rel. Carina Rodrigues Bicalho; 7ª Turma; Publicação: 25/03/2021; Julgamento: 17/03/2021)

 

DANO MORAL. INOBSERVÂNCIA DO NOME SOCIAL. É consabido que a pessoa transexual enfrenta discriminação e estigma generalizados na sociedade, inclusive no acesso ao trabalho, em razão da identidade de gênero. Deste modo, o respeito ao nome social ou o direito à alteração do nome civil, além de assegurar a dignidade da pessoa humana, concretiza os direitos fundamentais à identidade de gênero, ao livre desenvolvimento da personalidade e à não discriminação.

(TRT 2ª Região; RO 1000941-82.2019.5.02.0034; Rel. Thais Verrastro de Almeida; 17ª Turma; Publicação: 04/06/2020)

 

A exemplo disso, destaca-se que o Ministério Público do Trabalho, e desde 2015, através de sua Portaria nº 1.036/2015, regulamentou o uso no nome social em todas as suas unidades, mediante utilização do nome social no cadastro de dados e informações; no ingresso e permanência nas unidades do MPT; em comunicações internas, e-mails institucionais, crachás e listas de ramais; nos nomes de usuário de sistemas de informática; e na inscrição em eventos promovidos pela instituição, garantindo, ainda, o acesso a banheiros e vestiários de acordo com o nome social e a identidade de gênero de cada pessoa.

 

Outro ponto bastante controverso da lei resiste na exigência à apresentação de diversas certidões negativas, como se o requerente estivesse se utilizando do Provimento em comento por algum motivo espúrio que não fosse o próprio descontentamento e vexame de se apresentar com outro gênero, embora seus documentos revelem o contrário.

 

Da mesma forma, a não gratuidade dos documentos necessários à instrução do processo administrativo torna ainda mais inacessível o procedimento, circunstância que se agrava ainda mais diante do baixo nível de escolaridade da maior parte dos transexuais que, especialmente em virtude do latente preconceito, acabam deixando a escola e, invariavelmente, entrando para a triste estatística que revela que, infelizmente, estudantes transexuais representam só 0,1% do total dos alunos de universidades federais no Brasil.

 

Em suma, o fato é que, apesar dos avanços perpetrados por Provimentos como este, o Brasil ainda está deveras distante de, em verdade, apresentar políticas públicas que, em observância ao que preceitua sua Carta Magna, conceda tratamento digno e equânime a todos os brasileiros, sem distinção.

 

Ádala Gaspar Buzzi

adala.buzzi@brasilsalomao.com.br

 

Osvaldo Ken Kusano

osvaldo.kusano@brasilsalomao.com.br

 

 


[1] https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/transgenero-a-busca-por-sua-dignidade/