Com o advento da Reforma Tributária promovida pela Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, inicia-se um processo de substituição gradual do ICMS e do ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a ser administrado pelo Comitê Gestor do IBS.
Essa transformação profunda no modelo tributário brasileiro aplicado às relações de consumo suscita dúvidas relevantes quanto ao futuro dos benefícios fiscais estaduais concedidos no âmbito do ICMS, especialmente diante de contribuintes que estruturaram operações, realizaram investimentos e decidiram sobre a localização de suas atividades com base em cenários fiscais favoráveis instituídos pelos entes federados
Para compreender a dimensão dessas preocupações, é preciso retomar o contexto histórico.
Durante décadas, os estados brasileiros utilizaram benefícios fiscais como instrumento de política econômica e de atração de investimentos, resultando na chamada “guerra fiscal”, que consiste na concessão unilateral de benefícios fiscais com o objetivo de atrair empresas que, em razão de critérios de eficiência e logística, naturalmente se instalariam em outros estados, desorganizando a neutralidade tributária, estimulando a verticalização artificial de cadeias produtivas e gerando desequilíbrios competitivos e arrecadatórios.
Apesar de a Constituição exigir, desde sempre, que benefícios fiscais de ICMS fossem concedidos ou revogados por meio de deliberação unânime no âmbito do CONFAZ, diversos estados passaram a editar benefícios à revelia dessa exigência, levando o STF a reiteradamente declarar sua inconstitucionalidade. Diante da insegurança jurídica instalada, foi editada a Lei Complementar 160/2017, bem como o Convênio ICMS 190/2017 que convalidaram os benefícios então vigentes e estabeleceram uma trava temporal e material, com distinção entre benefícios industriais (mantidos integralmente) e não industriais (reduzidos gradualmente em 20% ao ano após o 12º ano).
Com a Reforma Tributária, o cenário se altera novamente.
Entre 2029 e 2032, conforme o artigo 128 do ADCT, as alíquotas do ICMS serão reduzidas progressivamente para 9/10 em 2029, 8/10 em 2030, 7/10 em 2031 e 6/10 em 2032. Os benefícios fiscais vinculados ao ICMS serão reduzidos na mesma proporção, substituindo a lógica anterior da redução de 20% prevista na LC 160/2017. Isso afeta particularmente os incentivos industriais, que passarão a decair em 10% ao ano, acompanhando a queda proporcional da alíquota, que seriam mantidos integralmente pela LC 160/2017, criando um cenário adverso para empresas beneficiadas.
Considerando esse impacto, a Lei Complementar nº 214/2025 instituiu o Fundo de Compensação dos Benefícios Fiscais, cuja finalidade é compensar os beneficiários de incentivos fiscais onerosos concedidos por prazo certo e sob condição, com base no artigo 178 do CTN.
Diante disso, apenas benefícios nessa condição poderão gerar “compensação’, o que exclui, por determinação legal expressa, os benefícios não industriais (atacado e varejo), que, segundo o legislador, já se encontram em posição mais favorável desde a LC 160/2017.
O fundo terá vigência entre 2029 e 2032 (art. 12, EC 132/23) e será financiado e administrado integralmente pela União, o que representa um ponto de tensão, já que a gestão dos incentivos fiscais sempre foi conduzida pelos Estados e pelo CONFAZ.
Outro ponto sensível, é a análise, pela Receita Federal do Brasil, das contrapartidas exigidas para a fruição dos benefícios fiscais estaduais, à luz dos contratos firmados com os entes estaduais, daí o problema. Ora, com a transferência dessa responsabilidade aos órgãos federais, há risco de prejuízo na análise, seja pela ausência de padronização dos critérios outrora adotados pelos fiscos estaduais, seja pela limitação de acesso ou compreensão das condições específicas pactuadas em cada unidade federativa, o que tende a aumentar a insegurança jurídica.
Adicionalmente, a complexidade dos critérios de (i) habilitação, da (ii) apuração da repercussão econômica e da (iii) comprovação dos requisitos demandará elevado grau de organização documental por parte das empresas, gerando diversas dificuldades que poderá obstar a compensação.
Outra dúvida latente é se os recursos destinados ao fundo serão suficientes para suprir a perda dos benefícios. Segundo o item 20 das “Perguntas e Respostas da Reforma Tributária”, elaborada pelo Ministério da Fazenda, a União destinará ao Fundo de Compensação os seguintes valores:
- em 2025: R$ 8 bilhões
- em 2026: R$ 16 bilhões
- em 2027: R$ 24 bilhões
- em 2028 e 2029: R$ 32 bilhões
- em 2030: R$ 24 bilhões
- em 2031: R$ 16 bilhões
- em 2032: R$ 8 bilhões
Somados, representam uma curva de recursos crescente até 2029 e decrescente a partir de 2030, refletindo a lógica de transição do ICMS para o IBS. Contudo, ainda não há clareza se esses montantes serão suficientes para atender integralmente todos os contribuintes que perderão benefícios fiscais.
Em síntese, todas essas dúvidas e reflexões abrem margem para possíveis pontos de judicialização, que devem ser observados pelo contribuinte, se não houver mudança que traga maior segurança e clareza para a fruição do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais Estaduais, tais como:
- Requisitos necessários para a referida compensação;
- Juízo de conveniência e oportunidade da Receita Federal que, por desconhecimento do cenário dos Estados, poderá operacionalizar a compensação de forma ineficaz;
- Alocação dos recursos, podendo privilegiar um Estado sobre o outro, causando distorções significativas entre os entes federativos.
A reforma, portanto, ao tempo em que mantém a diretriz de uniformização e neutralidade tributária, também reduz, de certa forma, a autonomia dos Estados, mesmo sob o argumento da criação de instrumentos compensatórios para mitigar perdas com o fim dos benefícios fiscais de ICMS. O modelo escolhido, no entanto, é tecnicamente complexo, de execução federal (RFB) e ainda cercado de incertezas sobre a efetiva cobertura dos prejuízos.
O tema continuará demandando atenção dos contribuintes e o Escritório Brasil Salomão e Matthes continuará acompanhando e à disposição para eventuais dúvidas que surgirem sobre o tema.